publicado dia 3 de outubro de 2014
Espetáculo busca entender processos invisíveis que moldam os espaços – e a vida – nas cidades
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 3 de outubro de 2014
Reportagem: Danilo Mekari
A diferença entre morar e viver. Apartamentos de 8m² a 1.318m² para todos os bolsos. O complexo habitacional dos seus sonhos.
É assim que os corretores apresentam o fictício Complexo Sol Nascente aos espectadores da peça “O retrato mais que óbvio daquilo que não vemos”, encenada pelo Coletivo PI em uma apresentação que começa na Casa das Caldeiras, dá uma volta no bairro da Água Branca, na zona oeste de São Paulo, e retorna para a antiga fábrica.
Antes do início, uma maquete do projeto imobiliário fica exposta ao público, que assume o papel de futuro morador de uma das quatro torres do Complexo: Veneza, Tóquio, Nova York e Olimpo, sendo esta última com 365 andares. O Sol Nascente conta ainda com praia e floresta artificiais, cinema, escola, padaria, heliporto, restaurante, supermercado, hípica, golfe – é vendida como “a Disney brasileira”.
A atração primordial do Complexo Sol Nascente é reunir todas os elementos positivos de uma cidade como São Paulo, relegando tudo o que é considerado de baixa qualidade para o ambiente externo, onde os futuros moradores não precisarão nem chegar perto. “Esse é o começo de uma nova etapa na vida de vocês”, comemoram os corretores.
Logo, os espectadores vestem coletes de segurança e saem pelas ruas do bairro, sempre guiados por homens-placa. Um dos vizinhos do Complexo é a Arena Palestra Itália, estádio do Palmeiras que está em fase final de construção. Os futuros moradores, claro, terão o privilégio de contar com um túnel que liga o Complexo diretamente ao camarote da arena, poupando-os de sair às ruas.
Ficção x Realidade
Qualquer semelhança com o Jardim das Perdizes não é mera coincidência. O projeto imobiliário – dessa vez não se trata de ficção – foi construído em um antigo terreno baldio de 250 mil m² na Barra Funda, onde foram levantados 32 edifícios. O valor total de vendas estimado pelas incorporadoras Tecnisa e PDG é estimado em R$ 4 bilhões.
Desde que o Coletivo PI se instalou na Casa das Caldeiras para realizar uma residência artística, em 2013, os integrantes se inquietam com os projetos grandiosos que estão surgindo no entorno: o Jardim das Perdizes, a Arena Palestra Itália, o Residencial Casa das Caldeiras e até mesmo o que já existia por ali, como o Shopping Bourbon. “A nossa pesquisa nasce nesse contexto. Criamos um espetáculo híbrido que fala sobre o que é viver em uma grande metrópole e sobre a especulação imobiliária, que está muito presente aqui”, declara a diretora da peça, Pâmella Cruz.
Ela acredita que o suposto retorno positivo que tais empreendimentos suscitam para a região são falsos. “Eles chegam com o discurso que vai trazer melhorias, tantos milhões de reais injetados para gerar empregos. Mas na verdade as pessoas que viviam aqui vão embora, forçadas a sair de seus lugares, de suas histórias e suas memórias”, lembra Pâmella. “É um investimento que não é pensado para as pessoas que de fato estão aqui, mas sim para quem tem o poder de comprar e estar naquela bolha.”
O que é invisível na cidade?
Após a apresentação um tanto surreal das vantagens de se morar no Sol Nascente, a trama começa a ganhar contornos reais com o aparecimento de Norma, uma personagem que acaba de cometer um atropelamento e é flagrada pelas câmeras de um programa de TV policialesco. “A rua é uma tristeza”, alertam aos futuros compradores. Norma – uma bancária que tem uma vida agitada e apressada como grande parte dos habitantes de uma metrópole como São Paulo – se vê em meio a um espiral de dúvidas acerca de seu próprio destino. “Eu atropelei uma pessoa invisível”, sustenta.
E foi justamente a questão da invisibilidade na cidade que deu início ao processo de construção do espetáculo. Em conversas com moradores da região, os integrantes do Coletivo PI concluíram que as pessoas acreditavam que, no ambiente urbano, todo acontecimento era devidamente registrado. “Começamos a nos debruçar sobre o que está embaixo desses vários discursos. As nossas práticas cotidianas, postas como normais e aceitas, são pouco reviradas ou questionadas. Tratamos daquilo que você cruza e não percebe, e nem tem noção de que não percebeu”, observa a diretora.
“O retrato mais que óbvio daquilo que não vemos” segue em cartaz até o final de outubro e é recomendado àqueles que buscam refletir sobre os processos subterrâneos que, gradual e continuamente, moldam os espaços urbanos e a vida nas metrópoles.
Serviço
“O retrato mais que óbvio daquilo que não vemos”
Datas e horários: Domingos (5, 12, 19 e 26/10), às 20h30
Segundas-feiras (6, 13, 20 e 27/10), às 20h
Terças-feiras (7 e 28/10), às 20h
Local: Associação Casa das Caldeiras – Avenida Francisco Matarazzo, 2000 – São Paulo/SP
Entrada gratuita (capacidade para 20 pessoas)