publicado dia 26 de agosto de 2014
Encenado no Minhocão, espetáculo reforça desejo por mais espaços de convivência nas cidades
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 26 de agosto de 2014
Reportagem: Danilo Mekari
Milhares são as janelas que indiscretamente avistam o Minhocão dia e noite, noite e dia, desde 1971, data de inauguração da obra viária mais polêmica de São Paulo.
Pois são necessárias apenas duas ventanas de um apartamento no terceiro andar do Edifício São Benedito, localizado no número 158 da Avenida Amaral Gurgel, para dar luz à intervenção teatral Esparrama pela Janela.
A peça transforma o prédio – que há 43 anos sofre a violência diária de estar a apenas cinco metros de uma das vias mais movimentadas do centro da cidade – em local de apresentação de uma obra artística cativante e inspiradora.
Julia tem apenas nove anos e veio da Mooca ao Minhocão pedalando sua bicicleta. “Gostei bastante, achei muito criativo. Nunca tinha visto uma peça na janela”, revela a garota, que veio acompanhada da família e lembrou que, durante a semana, atravessa o Elevado de carro com a mãe. “Aqui é muito mais legal quando passam pessoas.”
“A minha proposta é fazer um passeio com a família pela cidade, para as crianças entenderem a importância do transporte coletivo e dos espaços comuns”, revela Luiz Carlos Aires, pai de Julia, que também achou a intervenção excelente.
Transformando o caos em música
Uma música suave vai dando espaço ao som perturbador de carros em alta velocidade, buzinas, ambulâncias, sirenes; é um indício de que o tranquilo domingo – um dos momentos em que o elevado é fechado para veículos e está disponível para o bom proveito dos paulistanos – não vai ser apenas mais um dia de apropriação cidadã do Minhocão. Hoje é dia de espetáculo.
O morador do terceiro andar do edifício descobre possuir um curioso poder de abstenção perante o caos urbano. Ao tapar os ouvidos, não ouve mais o ambiente caótico ao seu redor e, então, se transforma em maestro, controlando os sons que entram pela sua janela.
A peça prossegue com o desenvolvimento de uma narrativa fantasiosa. As ventanas ganham batentes azuis e uma floreira, compondo uma cenografia simples e acertada. A faxineira se transforma em uma princesa cujo sonho é ouvir o canto de passarinhos ao invés de carros. As vizinhas fofoqueiras divertem o público e, a certa altura, se recordam dos antigos espaços públicos que viraram estacionamentos, condomínios particulares e shopping centers.
Morador do apartamento que concede as janelas ao espetáculo, o diretor Iarlei Rangel relata que o grupo percebeu o potencial de estabelecer um diálogo real com os transeuntes do Minhocão quando viram que diversas pessoas paravam para observar os palhaços ensaiando por ali.
“Queremos reforçar o grito da população pela necessidade de espaços públicos de convivência na cidade”, afirma Rangel. “É extremamente simbólico fazer um espetáculo onde quem está na rua é o público, que senta no meio do asfalto onde durante a semana passam milhares de carros.”
Os olhos são apenas janelas
A interação com a plateia, sentada na via e formada por crianças, pais e avós, skatistas, ciclistas e pedestres, é sempre estimulada pelos personagens, uma ação necessária por conta da enorme concorrência do espetáculo com o som da cidade que acontece à sua volta.
O próprio local, atípico para a encenação de uma peça, faz com que a relação entre palco e plateia se intensifique e reverbere uma questão comum aos que estavam ali: a necessidade de espaços públicos mais convidativos e propícios ao convívio social das milhares de pessoas que compõem uma cidade como São Paulo.
Por fim, o palhaço canta uma canção que arranca suspiros dos presentes. “Eu vou contar um segredo / os olhos são apenas janelas / E janelas não veem / quem vê é alguém que está atrás delas”, diz o personagem.
Próxima apresentação
Encenada pelo Grupo Esparrama, a peça já teve curtas temporadas em novembro de 2013 e fevereiro deste ano e foi contemplada com o Prêmio Cooperativa Paulista de Teatro na categoria Ocupação de Espaço.
No último domingo (24/8), foi apresentada a um público de aproximadamente 300 pessoas, que aplaudiram de pé quando um balão flutuante levantou a placa que indicava o final da peça.
Esparrama pela Janela será encenada uma vez mais no dia 21/9 (domingo), às 16h, entre as alças de acesso do Metrô Santa Cecília e a rua da Consolação. Não perca!
A foto que abre essa matéria é de autoria de René Misumi.