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publicado dia 11 de julho de 2014

Ocupe Estelita guarda o sonho de uma cidade feita por todos

Reportagem:

”Quase sempre tudo foi operado em nome do futuro, uma entidade inflexível e onipotente que outorgava um projeto de um mundo novo que se constitui no presente e se instala no futuro, mas em momento algum se situa ou se reporta ao passado e à tradição”.

– Luís Manuel Domingues do Nascimento

Há um velho ditado que sempre é recitado após uma mobilização social ou política, que diz, em tom de consolo e esperança, que não há movimento perdido. As forças em jogo não são iguais, as contas não são abertas, a pauta não é conquistada, muitos são reprimidos. Mas há algo que se instala e permanece. Algo que floresce, cresce e se espalha. Que afeta os que se envolvem ao ponto de nada ser como antes.

Não que o movimento esteja perdido. Mas a ocupação do Cais Estelita, na zona central de Recife, parece dizer respeito a esse tipo de espalhamento de consciências, de tocar em algum nervo adormecido que diz respeito à tanta gente. A cidade hoje, no Brasil e no mundo, é um campo de batalha de ideias e edifícios.

Não à toa que a possível demolição do Parque Taksim Gezi, em Istambul, na Turquia, foi o ponto de partida das revoltas turcas de 2013. Que quicaram até por aqui, com a eclosão das jornadas de junho, forjadas na crise da mobilidade urbana. Em ambos os casos, a consígnia inicial foi rapidamente extrapolada para diversos outros campos da vida nas cidades.

Mas o que é o cais José Estelita?

“Doze torres no cais
Doze torres a mais,
erros das estatais,
sangue que jorra no cais”
– Criolo

O cais José Estelita compunha a antiga zona portuária do Recife, com uma área de 100 mil quadrados, pertencente ao espólio da Rede Ferroviária Federal. Em 2008, foi arrematado em leilão por um consórcio de quatro construtoras (Queiróz Galvão, Ara Empreendimentos, GL Empreendimentos, Moura Dubeux Engenharia), batizado de Novo Recife, e à espera pela construção de 12 torres residenciais e comerciais de 21 a 41 andares de altura.

“É um projeto que desrespeita alguns encaminhamentos básicos: não tem estudo de impacto ambiental, de impacto de vizinhança. A prefeitura vergonhosamente não caracteriza como empreendimento de alto porte. São doze torres, 5.100 novas vagas de estacionamento, ou seja, 15 quilômetros de carros estacionados”, explica Chico Ludermir, jornalista, artista e ativista do movimento Ocupe Estelita.

Ludermir reforça ainda que o projeto, além de afetar ambientalmente o entorno, uma vez que a empresa de saneamento do Recife, a Compesa, afirmou que não terá condições de tratar o esgoto do empreendimento, deverá criar ilhas de calor e impactará a paisagem e as comunidades vulneráveis do entorno.

“Essa luta do Estelita é também uma luta metafórica pois representa o que está acontecendo com a cidade como um todo. É também o processo de remoção da comunidade do Coque, a fábrica Tacaruna, que está vaga há muitos anos e o governador doou para ser um centro de referência logística para a FIAT. Assim, a cidade vai ficando inóspita”, analisa.

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“Essa luta do Estelita é também uma luta metafórica pois representa o que está acontecendo com a cidade como um todo”.

 

 

 

 

 

 

 

Desde 2012, quando foi anunciado o projeto Novo Recife, pessoas se aglutinaram no grupo Direitos Urbanos para discutir as transformações num dos principais marcos históricos da cidade. Em uma noite de maio, quando tiveram início as demolições, manifestantes impediram o avanço das máquinas e ocuparam o Cais. O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) seguiu os ativistas e, por meio de uma liminar, embargou a obra. Foi nesse momento que o Cais se inscreveu no panorama nacional e internacional de mobilizações pelo direito à cidade.

A ocupação do Cais, relata Ludemir, foi antes de tudo “um movimento para salvaguardar o espaço, sem caráter possessório”. Ainda assim, contrariando compromissos e liminares, a ocupação foi brutalmente retirada pela Polícia Militar no dia 17 de junho. Mas a semente de algo maior já estava plantada.

A cidade é nossa. Ocupe-a.

Hoje, ao menos 500 pessoas seguem mobilizadas, acampadas no viaduto em frente ao Cais e outras 25 mil, estima o ativista, seguem em diferentes níveis de engajamento. Pelas ruas, redes e cidades, pipocam comentários e análises sobre a questão. “Esse poder espontâneo tem a força de um gigante, substitui a lógica da competição pela solidariedade, é uma pedra na engrenagem e uma mostra de que as coisas podem funcionar por outra lógica que não a do dinheiro”, projeta.

O cais se tornou “um espaço formativo de altíssimo nível”, congregando o que de melhor Recife produz em artes, educação, política e conhecimento. Professores universitários realizaram cursos e aulas públicas, cineastas lançaram filmes em apoio ao movimento, escritores de todo o país fizeram uma coletânea chamada “Inquebrável” para angariar verba e apoio, e o Estelita se tornou um marco nacional, “apesar do silêncio da mídia pernambucana”, pondera Ludermir.

“Essa vivência incorpora coisas que a gente nem consegue entender: urbanismo chama a discussão de direito à cidade, mas por trás tem também uma discussão sobre direito humano à comunicação, arte na política. Aí vemos como tudo isso permeia o poder do capital, o crescimento da qualidade de vida na cidade, o que isso quer dizer sobre feminismo, racismo, homofobia. Na nossa microsociedade, a gente não tolera certas coisas”, afirma o artista, que realiza uma instalação chamada “Mãos dadas”.

De mão em mão

Durante a ocupação, Ludermir começou a fotografar as mãos dos ocupantes e usou o material para cobrir paredes do Recife, “simbolizando as mãos que estão construindo essa cidade, corpo e parede, é a cidade como extensão do corpo, nossa mão como azulejo, como concreto, feita de nossa pele – e de fato ela é”, ressalta.

Enquanto luta para que haja uma discussão sobre os rumos da cidade, o #OcupeEstelita segue criando uma nova sociabilidade. Junto às muitas intervenções, coletivos e indivíduos vão reafirmando o caráter público do espaço do cais. Há, inclusive, uma escolinha em funcionamento no acampamento, que atende as curiosas crianças moradoras de rua e outras provenientes das comunidades vizinhas, com leitura, alfabetização e oficinas.

Para firmar a vocação desse efervescente momento, o movimento começa a delinear suas prioridades para aquele espaço, enquanto tenta negociar com a construtora e a prefeitura. Para além de preservar as velhas estruturas, urbanistas reunidos em torno da causa pleiteiam um caráter público para o espaço e a destinação de 30% da área para moradias populares, construídas ao lado de espaços de arte, cultura e debate. Mas o único consenso do movimento é que não se quer esse modelo de cidade, imposto de cima para baixo. O que se quer são muitas mãos, cabeças e braços.

Em tempo: Durante o fechamento desta matéria, o movimento Ocupe Estelita anunciou que manterá a ocupação do viaduto Capitão Temudo, mas sem acampamento e pernoite por motivos de segurança, dado que ocupantes tem recebidos seguidos ataques anônimos, inclusive na noite do 10/7, quando a carta foi anunciada. Confira aqui na íntegra.

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