Está no rosto da criança, percebe a boliviana Jobana Moya, que vive no Brasil há 10 anos. A filha Wayra, 7 anos, estuda em uma escola da rede municipal de São Paulo. Português na ponta da língua e pele mais clara do que a da mãe, que é neta de quéchuas, Wayra tem facilidade para se inserir nos espaços, algo que não acontece com todas as crianças migrantes.
“Os mais afastados são os mais pobres, os negros e os que têm traços indígenas, no caso dos imigrantes”, aponta.
A imigrante chilena Andrea Carabante Soto compartilha da mesma percepção. Ao lado de Jobana, ela atua como ativista no Coletivo Warmis e já ouviu diversos relatos sobre racismo e xenofobia entre as crianças. “Dentro da escola, depende muito do fenótipo que você tem. Se você é boliviano e tem um fenótipo indígena, você não será tratado da mesma forma que eu, que sou branca e chilena, que agora é um migrante aceito, diferente de 30, 40 anos atrás.”
Formada por ativistas voluntárias, a Equipe Base Warmis – termo que significa mulheres em quéchua – faz parte do Organismo Internacional do Movimento Humanista Convergência das Culturas. Em São Paulo, atua em diversas frentes pela garantia do acesso à informação para a comunidade imigrante, especialmente para as mulheres, e pela valorização da cultura migrante. Os projetos desenvolvidos pelo coletivo denunciam a violência obstétrica, trabalham a sensibilização cultural por meio da música e ampliam a difusão de conteúdos. As ativistas também realizam apresentações em escolas, contribuindo para a prevenção e enfrentamento da xenofobia.
Andrea percebe o privilégio dado pela cor da pele e classe econômica, mas como migrante também enfrenta desafios cotidianos para garantir ao filho Ulisses, 4 anos, uma infância em sua integralidade. Em São Paulo, longe de sua terra natal, Andrea cria estratégias para fortalecer o vínculo cultural dentro de casa, falando espanhol e preparando pratos típicos. Certa vez, foi acusada de aculturar o filho, como se fosse necessário suprimir suas origens em nome de uma suposta integração.
“Há uma cobrança da sociedade para você tirar tudo aquilo que te faz diferente para se adaptar, como se adaptação fosse homogeneizar. Você fica no dilema de querer que seu filho seja parte da sociedade e, ao mesmo tempo, de ver que aquilo que você traz não é aceito”, relata.
A filha de Jobana, Wayra, se identifica como boliviana ou brasileira, dependendo do seu interlocutor. “Ela tem como que um radar”, conta Jobana. Cabelos escuros como os da mãe, a menina gosta de usar tranças, falar espanhol e compartilhar conhecimentos sobre os aspectos da cultura boliviana. Na escola, porém, o que é motivo de orgulho se torna objeto de humilhação.
“O que fazem não é bullying, é xenofobia e isso tem que ficar claro para as crianças, professores e pais. Não é por conta de uma característica, mas pelo fato de ser migrante. Discriminam também pela questão racial. O racismo, a xenofobia e a discriminação são três temas que precisam ser trabalhados fortemente nas escolas. Isso serviria não só para as minorias, mas para todos, porque quando melhora para elas, melhora para todo mundo”, defende Jobana.
A escola brasileira diante da diversidade
Reconhecer e valorizar as múltiplas identidades e culturas existentes em sala de aula – e fora dela – representa um desafio histórico para a escola brasileira. Em São Paulo, soma-se às questões étnico-raciais já enfrentadas no país o fato de que há 4.381 estudantes migrantes matriculados na rede pública de educação. São crianças e adolescentes que vivenciam e compartilham hábitos, saberes, costumes e características dos seus países de origem.
Esse número, entretanto, não contempla os estudantes migrantes de segunda geração, ou seja, aqueles nascidos em território brasileiro, mas oriundos de famílias de outras nacionalidades. Invisibilizados no ato de matrícula, esses estudantes lidam com outras dificuldades quando chegam à escola, como a língua falada, a falta de um Projeto Político Pedagógico (PPP) que os acolha e, em alguns casos, a xenofobia.
“Falo espanhol em casa e tem várias coisas que são diferentes. Como essa cultura é trazida para a escola? Meu filho Ulisses tem RG brasileiro e tudo que está por trás é apagado”, critica Andrea.
Essa é uma realidade com a qual a professora Adriana de Carvalho se deparou durante sua atuação como coordenadora da área de educação para imigrantes do núcleo étnico e racial da Secretaria de Educação. Adriana desenvolve uma tese de doutorado sobre acolhimento às crianças imigrantes na rede pública de São Paulo e aponta a necessidade de dar visibilidade para essa infância.
A agência de notícias Bolívia Cultural foi lançada em 2008 para divulgar a diversidade cultural da terra natal de Antonio Andrade, que nasceu em Sucre, a quinta maior cidade da Bolívia. O Bolívia Cultural trabalha para fortalecer as identidades bolivianas ante a visão estereotipada difundida pela mídia tradicional.
“Muitas vezes, a criança está na sala de aula, mas não é percebida, vista pelos professores e Poder Público. Se a gente conseguisse romper com isso já seria meio caminho andado, porque essa criança seria considerada como protagonista do processo de ensino e aprendizagem, entendida como um sujeito dentro da escola e não apenas como um número”, reforça.
No Brasil há mais de vinte anos, Antônio Andrade vê a cultura como caminho para essa valorização. Fundador dos portais de notícias Bolívia Cultural e Planeta América Latina, ele identificou nas diversas palestras realizadas em escolas da rede pública de São Paulo a ausência do tema na educação do país. “Na Bolívia, a América Latina faz parte da nossa educação, mas o Brasil em sua metodologia de ensino, tem pouco cuidado com esse conhecimento, tanto que o brasileiro não se considera latino-americano”, aponta.
Para superar essa barreira, Antônio dialoga com as crianças a partir de exemplos próximos, como as músicas, danças e o futebol, que muitas vezes carregam as mesmas influências. Antônio recorda que, certa vez, ao visitar uma escola da rede pública, soube pela professora que praticamente todos os alunos da classe ficaram de cara fechada quando souberam que haveria uma palestra sobre Bolívia, mas após a aula, todos bateram palmas com entusiasmo e até pediram para que o encontro durasse mais tempo. “Quando a criança brasileira se reconhece como latino-americana, ela se sente muito mais feliz e integrada”, destaca Antonio.
Para que isso aconteça, no entanto, é preciso promover a formação dos professores e funcionários, baixar os muros e aproximar a comunidade, mapear a presença de alunos imigrantes e filhos de imigrantes e ter um currículo e projeto político pedagógico construído numa perspectiva intercultural.
É o que aponta a psicóloga e diretora da Cidade Escola Aprendiz, Natacha Costa. Para ela, a valorização da diversidade pela escola é fundamental para que as crianças consigam viver suas infâncias de forma plena. “O importante é entender a diversidade como valor, como riqueza. Muitas vezes a diversidade tende a ser considerada como problema, desafio, mas ela não é. Além de ser a identidade de um lugar, de como as pessoas são e como se relacionam, é um valor que pode ser oferecido a qualquer processo social, inclusive, ao educacional.”
Para tanto, acrescenta Natacha, a escola e os educadores precisam conhecer as especificidades dessas crianças e o contexto no qual estão inseridas. É aqui, segundo ela, que o território emerge como um ativo fundamental para a educação.
“O território nos informa sobre as identidades, questões e sobre os interesses das crianças. É fundamental para a educação considerar quem aprende como sujeito, por isso, é preciso compreender que eles vivem em um lugar, imersos em uma série de dinâmicas que precisam ser conhecidas para que haja um processo de ensino aprendizagem significativo”, defende.
Educação como direito das crianças imigrantes
A intensificação dos fluxos migratórios no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX não foi acompanhada da garantia do direito à educação, conforme narra a pesquisa “O acesso à educação escolar de imigrantes em São Paulo”, realizada pela mestre em Direito, Tatiana Waldman. Naquele momento, o Brasil tinha um sistema escolar deficitário e a taxa de analfabetismo no estado de São Paulo chegou a 75% em 1920, com apenas 28% da população em idade escolar matriculada na rede pública de ensino.
Nesse contexto, os imigrantes tiveram consentimento e estímulo do Estado brasileiro para estabelecer as próprias escolas no país, denominadas escolas de imigração ou escolas étnicas. Essa não era uma particularidade de imigrantes europeus ou asiáticos, uma vez que os africanos também conservavam escolas específicas.
Além das falhas no sistema de ensino, também pesava para a criação das escolas o ambiente de conflito entre algumas nacionalidades e a hostilidade dos paulistas, que se manifestavam contrários à imigração em publicações da época.
Esse cenário começa a mudar após a 1ª Guerra Mundial, com o início da política de nacionalização e limitação das escolas de imigração. Em São Paulo, o sistema público de ensino tenta abranger os imigrantes, com escolas públicas próximas às étnicas.
Por volta de 1938, a nacionalização se torna compulsória, com decretos que extinguem ou transformam em públicas as escolas de imigração e tornam obrigatório o uso do português em todos os materiais de ensino, além de incluir história e geografia brasileira no currículo e proibir o ensino de língua estrangeira aos menores de 14 anos.
Surge então a preocupação de inserir os imigrantes no sistema público de ensino, porém sob a imposição do idioma nacional e apagamento deliberado da diversidade cultural. Em 1980, a situação se agrava com a promulgação do Estatuto do Estrangeiro, que estabelece que a matrícula escolar só poderia ser feita se o imigrante estivesse devidamente registrado e possuísse o documento de identidade do Brasil. Quem não atendesse a tal norma teria a matrícula cancelada e seria suspenso do curso.
“A escola é usada como meio de fiscalização de permanência de imigrantes no Brasil e como forma de desencorajar o movimento imigratório indocumentado ao país e excluir a presença de tais imigrantes no sistema de ensino brasileiro”, analisa Tatiana Waldman no estudo.
A legislação estava na contramão da garantia da educação como direito universal estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Hoje, a Constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, além dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, asseguram o direito humano à educação escolar para todas as pessoas residentes no país, independentemente da regularização migratória.
Apesar desses episódios, coube às organizações da sociedade civil, como a Comissão de Justiça e Paz e a Pastoral do Migrante, tensionar o poder público para que esse direito fosse garantido e superar normas inconstitucionais criadas a partir dos dispositivos do Estatuto do Estrangeiro. Foi o caso da Resolução 09 de 1990 da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, publicada durante a gestão Fleury, cuja determinação estabelecia que a matrícula só seria efetivada mediante apresentação de documento de identidade, impactando diretamente a vida de centenas de crianças migrantes que tiveram o direito à educação negado, como relata a doutora em sociologia, Patrícia Tavares de Freitas.
“Há muitos relatos dessa época não só em relação à matrícula na escola, mas de forma geral a Polícia Federal atuava de forma bastante truculenta em relação à questão da indocumentação e da presença dos imigrantes latino-americanos na cidade e com essa Resolução ficou ainda pior”, destaca.
Patrícia pontua que a Resolução não foi seguida de imediato, mas com o aumento da fiscalização, as crianças migrantes passaram a ser barradas na rede estadual de ensino, o que mobilizou as instituições ligadas à causa migratória, que se articularam com os movimentos de educação e direitos humanos. A Pastoral do Migrante, por exemplo, formulou um dossiê compilando relatos de migrantes afetados pela restrição imposta pelo governo e Dom Evaristo Arns, da Comissão de Justiça e Paz, foi pessoalmente pedir a revogação da norma ao secretário da educação da época.
A Resolução só foi revogada em 1995, pela Secretaria de Justiça e Direito à Cidadania da gestão Mário Covas, mas ainda hoje há relatos, embora pouco frequentes, de funcionários que, por desconhecimento, negam a matrícula para migrantes sem documentação.
Embora a questão da documentação tenha deixado de impedir o acesso ao Ensino Fundamental, há uma série de questões enfrentadas por quem pretende se matricular em outros níveis de ensino. Rocio narra que uma estudante migrante tentou fazer a matrícula em várias escolas de Ensino Médio apresentando a credencial com as notas obtidas no primeiro ano cursado na Bolívia, mas todas se recusaram. Para piorar a situação, no trajeto entre uma escola e outra, a jovem perdeu o documento que atestava os anos de estudo até ali obtidos – situação comum a quem atravessa um processo migratório.
“Falo muito sobre a necessidade de sensibilização de quem está do outro lado. As pessoas do atendimento vão mudar, mas essa pessoa que perdeu a libreta talvez nunca mais estude e você será responsável pela mudança na vida dela”, frisa.
Hoje funcionária concursada no Instituto Federal de São Paulo, Rocio reconhece o impacto de um atendimento comprometido com a garantia dos direitos humanos na vida de um migrante, já que sua vida foi transformada por um funcionário da antiga escola em que estudava. Rocio havia interrompido os estudos na juventude por conta da gravidez da filha e, anos depois, ao ver a placa anunciando aulas do supletivo Educação para Jovens e Adultos (EJA), foi à escola e conseguiu ser matriculada no ato.
“Nunca vou esquecer disso: mudou minha vida”, conta emocionada. “Eu não tinha nem o Ensino Médio e poderia ter continuado assim. Minha filha não teria as condições que tem hoje se eu não tivesse estudado. Dizer que sou funcionária pública e demonstrar isso para ela me deixa muito orgulhosa. Para mim, educação é muito importante. Imagina se você vai lá e a pessoa te fala não.”
Hoje, Rocio coordena o coletivo Sí, Yo Puedo, por meio do qual percebe que ainda há muito trabalho para que as políticas educacionais tenham a interculturalidade como diretriz, promovendo a formação de todos os profissionais da escola. “Vejo muitos trabalhos bons em algumas escolas e em outras não há comunicação. A escola não se comunica com o pai, que não se aproxima da escola. Deveria haver formação de professores e funcionários em qualquer escola que atende imigrantes.”
Construir uma educação intercultural
Relatora especial das Nações Unidas sobre Direito à Educação entre 1998 e 2004, Katarina Tomasevski propôs a criação de um marco internacional que mostrasse quais dimensões devem ser observadas para que o direito à educação aconteça: disponibilidade, que haja instituições e programas de ensino suficientes; acessibilidade, sem obstáculos econômicos, legais ou discriminatórios; aceitabilidade, com padrões mínimos de qualidade; e adaptabilidade, que seja flexível para olhar para a diversidade dos alunos. A estrutura foi adotada pelo Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais da ONU.
Doutoranda e mestre em sociologia da educação, Giovanna Modé ressalta que tais dimensões mostram que é preciso pensar além do acesso para verificar se o direito à educação de fato se realiza. “A realização do direito à educação para as crianças imigrantes evidentemente tem um custo, que deve ser honrado pelo Estado, porque faz parte da realização do direito. Muitas vezes você precisa sim contratar profissionais extras para dar conta disso e assim tem que ser. Essa questão não dever ser vista como assessória, porque vai garantir o direito para essa criança.”
Um dos aspectos que deve ser contemplado para que a escola trabalhe numa perspectiva intercultural é a participação da comunidade. “Com a maior valorização das culturas, da diversidade dentro do espaço escolar e maior aderência dos movimentos que trabalham com a temática, você começa a entrar em uma esfera de mudança simbólica e cultural e desconstrução de imagens muitas vezes hegemônicas dessas populações. As barreiras à convivência precisam ser desconstruídas, porque a escola pública está aí para gerar esse encontro”, afirma Giovana.
No mesmo sentido, Adriana lembra que a escola é em muitos espaços o único local de participação e protagonismo e, por isso, deve baixar os muros e dialogar com o território. “A escola é um dos polos dinâmicos de participação social e precisa se colocar como vanguarda nesse processo, abrir as portas aos finais de semana para receber a comunidade e apresentar o que tem produzido em termos de cultura e conhecimento. Se a escola fizer isso, ela já estará contribuindo bastante, para além das atribuições que já fazem parte da legislação educacional.”
Coordenador do Centro de Direitos Humanos e Cidadania (CDHIC), Paulo Iles esteve à frente da Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig), entre maio de 2013 e março de 2016, e vê na gestão democrática da educação uma oportunidade para que a participação das famílias migrantes se amplie.
“O grande desafio é enfrentar a grade curricular, criando mecanismos para que a cultura dos imigrantes possa ser valorizada na sala de aula. Precisamos potencializar esses espaços abertos para a comunidade. A escola não pode ser isolada da comunidade. É preciso abrir espaço de diálogo em que as famílias dos migrantes possam ter essa convivência”, defende.
Embora ainda sejam poucas as escolas que desenvolvem projetos interculturais, é importante que tais experiências sejam compartilhadas e visibilizadas como modelo para novos projetos numa perspectiva anti-xenofóbica e antirracista.
Além disso, mais do que replicar, é preciso incidir sobre o poder público ocupando todos os espaços de discussão em que as políticas são construídas. “Não podemos perder de vista que ter uma sociedade civil fortalecida com imigrantes incidindo no poder público local é a frente mais importante a ser fortalecida nesse momento, porque tudo que vier será em resposta a isso”, frisa Giovanna. Dessa maneira, será possível construir uma educação intercultural, que rompa os muros e que ensine a todos que a diversidade é a nossa maior riqueza.