“O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que está falando em território usado, utilizado por uma população.”
Milton Santos
Reconhecer as condições de vida das crianças e suas famílias, os desafios enfrentados diariamente por quem habita o bairro e os ativos do território que compõem o entorno da escola foram estratégias fundamentais para potencializar a atuação do Projeto Integração Família – Rede Socioeducativa.
Sistematizado pelo Bairro-escola, tecnologia social desenvolvida há 20 anos pelo Aprendiz, o Diagnóstico Socioterritorial é um instrumento de leitura dos territórios que permite às redes locais projetar diretrizes e ações a partir dos contextos e realidades vivenciados no cotidiano.
Em 2013, o Aprendiz produziu e publicou dados coletados com a comunidade que vive no centro de São Paulo. Esse material foi então revisto e atualizado no âmbito da implementação do Projeto Integração. Além das referências institucionais (políticas, normas e diretrizes) que pautam as políticas públicas, o Diagnóstico possibilitou a sistematização e o compartilhamento das experiências vividas entre os principais atores locais.
A metodologia utilizada, já implementada pelo Aprendiz em outros territórios do município de São Paulo e no Rio de Janeiro, pode ser incorporada por qualquer rede, em qualquer contexto que tenha por desejo a constituição ou fortalecimento de um Território Educativo.
Conheça a metodologia completa do Diagnóstico Socioterritorial do Bairro-escola
Destacam-se as seguintes estratégias e princípios para realização do Diagnóstico Socioterritorial:
- Iniciá-lo 6 meses após o começo da atuação do projeto no território;
- Realizá-lo de maneira participativa, escutando, por meio de instrumentos específicos, educadores, moradores, pesquisadores e crianças;
- Articular e mobilizar os agentes do território para o engajamento com o projeto;
- Escutar as crianças das escolas sob atuação do projeto;
- Combinar dados primários e secundários, extrapolando o caráter geográfico e numérico, entendendo as diferenças populacionais, diversidades territoriais e culturais, além das desigualdades sociais;
- O documento produzido deve ser orgânico, flexível e permitir alterações ao longo do tempo. A proposta é que cada agente local o utilize de acordo com sua necessidade e área de atuação, seja saúde, assistência, educação, cultura, entre outras.
Com o diagnóstico em mãos, a expectativa é que o território possa se aproximar de forma técnica de sua realidade, contribuindo para a reflexão e construção de ações com impacto real no desenvolvimento integral de suas crianças e jovens.
Passo a passo do Diagnóstico Socioterritorial do Bom Retiro
1. Definição do território
O diagnóstico foi realizado em um raio de 2 km contabilizado a partir da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) João Theodoro, pois foi considerado o caráter territorial da política educacional já que as matrículas nas unidades são realizadas em função da proximidade entre escola e moradia. Este raio também permitiu a caminhabilidade entre os pontos, facilitando processos de articulação e mobilização de agentes.
2. Levantamento de dados primários e secundários
Os dados oficiais extraídos de fontes como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) e Pesquisas Municipais somaram-se às entrevistas realizadas com lideranças do bairro, gestão escolar, movimentos sociais e equipamentos urbanos.
Por fim, a escuta das crianças (detalhada abaixo) buscou assegurar que suas percepções sobre o bairro figurassem no Diagnóstico Socioterritorial, criando um alicerce potente para a investigação acerca dos distintos usos do território. Os dados coletados visam embasar os seguintes eixos estruturantes do Diagnóstico:
- Perfil do território e as condições de vida das crianças, adolescentes e jovens;
- Características dos espaços de participação do território e seus agentes locais;
- Condições das escolas para o desenvolvimento integral;
- Rede intersetorial existente para a promoção dos direitos das crianças, com especial atenção às migrantes.
No âmbito dos dados secundários, a análise rigorosa da caracterização demográfica – população, mortalidade, renda, consumo e educação – e socioespacial – edificações, usos, ocupação, habitação e mobilidade urbana – apresenta aos moradores e trabalhadores do território um retrato detalhado que será analisado e comentado por eles, visando a construção de estratégias coletivas de atuação. O desenho das ações, bem como seu cronograma, devem atender a demanda por direitos, preservando singularidades, identidades e memórias.
No Bom Retiro, o levantamento quantitativo da população migrante, as condições de moradia, a alta oferta de transporte público e a presença marcante de equipamentos culturais corroboram a noção de que o bairro é um território central da cidade e, portanto, com elevada oferta de serviços públicos. Quando articuladas com os dados primários, algumas dessas informações foram validadas e outras questionadas, por exemplo, o acesso da comunidade local a esses ativos culturais. Ou ainda, as barreiras enfrentadas pelos migrantes para ampliar os espaços da cidade ocupados por eles. Estas relações foram fundamentais para dar início a um conjunto de ações em rede.
3. Escuta das crianças do território
Garantir processos de escuta às crianças do território é o primeiro passo para que o direito delas à cidade possa se cumprir. O Projeto Integração, a partir dos acúmulos de 20 anos de atuação da Cidade Escola Aprendiz, buscou respeitar as linguagens e formas de expressão de meninos e meninas, assim como o caráter lúdico dessa importante etapa da vida.
É fundamental assinalar que os modelos de participação social implementados para adultos não devem ser reproduzidos e as metodologias devem buscar contextualizar as infâncias e estimular a criatividade dos pequenos. As metodologias utilizadas pelo Projeto Integração podem ser baixadas AQUI. No entanto, é importante ressaltar que cada território pode explorar novas estratégias de escuta e engajamento social de crianças, respeitando princípios básicos como:
- Sutileza e vínculo
- Cocriação
- Respeito ao tempo da criança e à diversidade cultural
- Ausência de julgamento
- Trabalho em grupo
- Acolhimento do espontâneo e das diferentes linguagens
- Escuta
- Confiança
- Consciência de seu papel
A perspectiva de escuta das crianças para o Diagnóstico Socioterritorial altera a leitura tradicional do território, pois considera as crianças como sujeitos de direito, cidadãos ativos em sociedade, produtores de cultura e pessoas capazes de opinar sobre o mundo que as cerca.
As crianças que se envolveram com o processo de escuta demonstraram ter como referência de espaço de lazer os shoppings e quadras esportivas fechadas, sinalizando que os equipamentos e espaços públicos não compõem o imaginário associado ao tempo livre, destinado ao brincar. De posse dessa informação, a rede local desenhou ações que tinham como objetivo reverter esse quadro, devolvendo as ruas às crianças do Bom Retiro.
Assim surge o Que Bom Retiro: Festival de Rua do Bom Retiro, uma iniciativa que, além promover o engajamento das famílias para utilização da rua como espaço de lazer, também visava atender a demanda por mais espaços onde fosse possível brincar.
Além disso, foi possível extrair da escuta com as crianças que o paradigma do automóvel vigora no imaginário de meninos e meninas, embora não se desloquem dessa forma pela cidade com suas famílias. Quando essa informação foi confrontada com os dados primários coletados com as famílias, a rede local compreendeu que o deslocamento predominante é feito a pé ou de bicicleta. Tais contradições alertam para como a priorização e valorização do transporte motorizado individual, assim como sua hegemonia no espaço urbano, moldam o discurso das crianças desde cedo.
4. Leitura e análise interna dos dados
O Diagnóstico Socioterritorial é mais do que uma compilação de dados e informações que exige uma leitura extensa, densa e profunda sobre determinado fenômeno ou contexto. Na verdade, ele deve ter a capacidade de evidenciar dinâmicas e mudanças em uma localidade, apontando as potencialidades e os obstáculos para a intervenção em determinado contexto socioespacial. O Diagnóstico é, portanto, parte de um conjunto de instrumentos de gestão territorial que pode subsidiar as ações sociais, como é o caso do Projeto Integração. Trata-se da capacidade de entender a realidade e agir sobre ela.
É preciso alertar, entretanto, que se no universo médico o diagnóstico é realizado a partir da apresentação do problema (sentido e percebido por meio dos sintomas). Em contrapartida, a maneira como o Diagnóstico Socioterritorial deve ser implementado está mais próxima de uma leitura da realidade do que propriamente do levantamento de suas enfermidades e problemas. Por isso, é importante preservar a capacidade dessa análise em prover caminhos para uma intervenção o na realidade.
Recomenda-se então que uma equipe se debruce sobre os dados, sistematize as principais análises e as conecte às características demográficas, espaciais, aos dados primários e percepções oriundas dos roteiros de observação de campo. A partir daí, será possível construir um documento síntese que apresente as principais descobertas e possa ser compartilhado e validado com os agentes do território.
5. Compartilhamento dos dados nos territórios
Compartilhar os dados com os agentes que estão engajados com o desenvolvimento local e com as redes que compõem o território permite entrelaçar as análises do Diagnóstico Socioterritorial com o conhecimento prévio dos grupos que ali vivem e atuam, enriquecendo a leitura e possibilidade de análises.
A realização de um encontro para validação dos dados do Diagnóstico com a comunidade é uma estratégia de engajamento dos diferentes atores não apenas nas observações, comentários, dúvidas e sugestões mas, sobretudo, no desenho de um Plano de Ação, que deverá ser desenhado coletivamente.
No caso do Projeto Integração, cujo foco eram as famílias e crianças migrantes, o Diagnóstico Socioterritorial procurou trazer à tona as questões relacionadas à migração, apoiando o reconhecimento e valorização do Bom Retiro como um território de múltiplas culturas e nacionalidades.
Várias metodologias podem ser empregadas nesse tipo de reunião. A equipe do Aprendiz optou pela ferramenta The World Café, que propicia um diálogo estruturado, com trocas e compartilhamento de saberes. Você pode conhecer esta ferramenta clicando AQUI.
6. Validação dos dados a partir das questões apresentadas pelo território
Realizar um documento síntese que possa ser utilizado pelos diversos atores do território é essencial para que o diagnóstico tenha sua real função estabelecida.
Por outro lado, é importante evitar que o Diagnóstico converta-se em um documento fechado e finalizado, uma espécie de fotografia do território. Ao contrário, ele deve ser uma ferramenta viva, aberta e passível de novos usos, questionamentos e análises.
Acesse o Diagnóstico Socioterritorial do Bairro-Escola Bom Retiro